O Punhal dos Corcundas Nº 20 (II)

(continuação da Parte I)

Lugar do Paço da Inquisição, hoje Teatro D. Maria II

Enfim tanto dá a água na pedra, que chega a consumi-la e gastá-la de todo, e outro tanto sucedeu neste Reino afrancesado, onde corriam livremente as mais furiosas diatribes contra o S. Ofício; e por isso a doutrina de ser indispensável a extinção do Tribunal da Fé se vulgarizou de tal maneira, que todo o Português medianamente sábio teria pejo de sustentar a contraria por mais bem fundada que lhe parecesse, que a tanto chega o Despotismo Filosófico dos nossos dias! Acrescia o ressentimento de vários adeptos, que em melhores tempos figurariam como partes essenciais nos autos-de-fé, mas que por especial indulgência do S. Ofício foram apenas exortados e repreendidos, para que não tardasse mais outra solene verificação de que poupar tais inimigos é condenar-se a morrer-lhes nas mãos...
Exultaram os Pedreiros deste como ensaio de mais claros triunfos; e por isso em Coimbra manifestaram o seu gozo, acudindo às portas do Tribunal extinto, e deitando foguetes no meio de espantosos alaridos em tempo que já dormiam os habitantes da cidade, porque os tais heróis folgam muito destas manobras feitas às escuras. Seguiu-se a estrondosa revista dos cárceres, onde se via tudo o que podia exaltar a imaginação, e acender o justo rancor de todos os Portugueses, menos as vítimas, que faltaram absolutamente!!! Forjaram-se calúnias, inventaram-se formas exóticas de castigar os réus, e a própria cal vermelha das paredes interiores foi denunciada como sangue das vítimas! Arrombaram-se os cartórios (medida constitucional), furtaram-se muitos processos inteiros, e foi pena que nunca saíssem da mão de seus descobridores, que talvez por filantropia não quisessem tocar nos defeitos graves do S. Ofício, quando por outra parte lhos assacavam a seu bel-prazer... 
Ainda não contente a fúria dos liberais, decretou a solene demolição dos cárceres (parece que lhe adivinhava o coração o perigo iminente de serem ainda os seus povoadores) e para a execução desta providência foi necessário que se gastassem avultadas somas, e, o que é ainda mais próprio deste século de extravagâncias, a sala principal do S. Ofício de Évora destinou-se, valha a verdade, para local de sociedades maçónicas... Tanto mudam os homens e as coisas!!! Nada mais fácil que tapar de uma vez a boca aos inimigos do S. ofício. Muito embora não penetrem os indiferentistas modernos a justíssima causa desse impenetrável e misterioso segredo, que até certo ponto se guarda nos processos. Quando os negócios da Fé eram os que mais doíam aos Portugueses, não se estranhava coisa alguma destas, e os bons Católicos perdoavam de boamente ao S. Ofício que ele ocultasse muito do que só poderia irritar e escandalizar os fiéis. Depois que começou a grassar (até nas próprias classes que deviam sobressair em zelo e actividade para tudo que fosse promover a glória do Cristianismo) essa maldita indiferença para tudo que é sobrenatural e Divino, começaram também de estranhar-se os rigores do S. Ofício, que teve de abrandá-los, e conformar-se nesta parte às opiniões do século... O grito de usurpação dos direitos Episcopais é agora o mais indiscreto e menos atendível. Já mostrou a experiência que os Excelentíssimos Ordinários carecem da maior parte da força que acompanhava todos os procedimentos do S. Ofício. Saíram impressos nas cidades episcopais alguns escritos obscenos, e ímpios, e não vi que saíssem Pastorais a desviarem o rebanho dos pastos venenosos; o que deve cortar pela raiz o ciúme de alguns Bispos que se lastimavam dessa pretendida usurpação, que era mais um favor, e um auxílio poderoso, que sustentava o ministério Episcopal, do que um atentado contra os seus inauferíveis direitos, nem os filósofos do tempo adularam os Bispos, e trataram de lhes agravar a ferida, senão com o doloso intuito de enervarem o poder do S. Ofício, que era o único de que mais se temiam, e que mais obstava aos progressos da Maçonaria. Era tão poderosa a ascendência do Tribunal sobre os malfadados vingadores de Adonirão, que assim mesmo debilitado, enfraquecido, e posto numa certa nulidade, tinha ainda forças de sobejo para lhes estorvar as suas reuniões, e impedir que se metessem a recrutar impunemente, e que fazendo gala do sambenito (o verdadeiro ficava-lhes a morrer!) preparassem, e adereçassem as lojas dos seus paninhos envernizados, de suas mitras, esquadrias, e mais insígnias e utensílios de lata, etc., etc., etc.

Doces despojos
Tão bem logrados
Enquanto Deus,
Enquanto os fados
O consentiam!

Ainda bem que na invenção e descoberta da Farraparia maçónica leu toda a cidade de Coimbra duas verdades muito importantes, e da maior consequência para o futuro. 1.ª A existência dos Pedreiros Livres, que era impugnada por certos heróis, aos quais ou faltava o senso comum, ou sobejava a malícia para encobrirem deste modo os seus caríssimos irmãos. 2.ª A urgente necessidade da imediata restituição do Tribunal do S. Ofício, o único que pode fazer uma guerra bem-sucedida ao Maçonismo, que só vigiado de perto, contrariado em seus planos, e ameaçado de jazer, ou jazendo de facto nos cárceres do S. Ofício, é que poderá tomar juízo. Entrementes para que o tal Sr. Maçonismo, tão presunçoso como depravado, não cuide que só contei histórias e disse algumas chalaças, e que ele esgotou a matéria, e fez um papel brilhantíssimo no Salão das Necessidades, farei um par de observações sobre a estrepitosa Sessão em que foi abolido o Tribunal da Fé, e caminharei, depois senão a uma apologia formal, que não é agora do meu intento, pelo menos a um ensaio de apologia, que não será de todo inútil para as crianças que a lerem, e poderá consolar os bons Portugueses, para os quais já tarda muito a desejada restituição de um Tribunal, a quem devemos o ser Católicos; pois que seria de nós se as heresias de Lutero e Calvino tivessem penetrado e lavrado impunemente neste Reino!!

Erros, contradições, e sandices dos tresloucados e furibundos Preopinantes, quando fizeram abolir o Tribunal da Fé...

Se ao tempo em que eu via sair de Coimbra no meio de Verdeais e homens de vara um carro atulhado de estudantes, ou vadios, ou facciosos, ou amadores de novidades prejudiciais à ordem pública, me dissesse algum dos circunstantes que aplaudiam esta rigorosa, mas indispensável medida do Vice-Reitor José Monteiro da Rocha: "Aquele de horrenda catadura que vês estendido na carreta em ar meditabundo, propriedade de ciência que faz objecto de seus estudos; e assim com a fisionomia de cabeça de motim, ou chefe de seita... esse mesmo há de governar ainda os Portugueses, há de ser ouvido pelos maiores sábios da Nação como oráculo, e para te dizer de uma vez até onde chegará a sua poderosa influência, há de extinguir o Tribunal do Santo Ofício, e ninguém abrirá bico diante dele para o impugnar ou contradizer... eu pedia a quem tal me dissesse que ninguém mais o ouvisse, temendo que o remetessem de envolta com os heróis do carro, mas para outro destino, a saber, Casa de Orates... A que chegámos no tempo constitucional!! Tudo isso vimos, e o vimos calados e tranquilos!!! Não quero agora trabalhar os nossos Ixiões, a quem as nuvens pareceram Deusas... Apareça em Cena o novo Fayel ou Hamlet, o pavoroso Diário de Cortes nº 42, que nos regalou as entranhas com os debates ou rebates falsos da sessão de 26 de Março de 1821, e vejamos como ele fica depois da esfrega Histórico-crítica, que lhe tenho preparado.

Texto

Esta bula (a da instituição do Tribunal da Fé) foi recebida por agrado pelo Rei D. João III, sem saber que recebia com ela a infâmia e a desgraça deste Reino.

Censura e comentário

Bem sei, meu Português à força (vai o C plicado, se o quiseres sem ela, farás o que te parecer melhor) que essa famigerada bula não poderia nunca ser ouvida com agrado nos Congressos de Satanás, Belzebu, Astaroth, Asmodeu, e outros que tais... porém um Rei Católico e verdadeiro Pai dos seus vassalos (não tenhas medo a este papão), e verdadeiro Pai dos seus vassalos, muito bem inteirado do que sucedera em Lisboa no tempo de seu Augusto Pai, e de quanto era inflamável o zelo dos Portugueses em tudo o que respeitava à santa Religião dos seus maiores; e vendo-se por outra parte ameaçado das heresias de Lutero e Calvino, que só lhe traziam a perdição eterna de seus vassalos, assentou que era melhor obstar aos males em seu princípio, que ter de chorar dentro em poucos anos outra matança e destruição de seus filhos, muito acima da que se perpetrara em Lisboa debaixo de pretextos de Judaísmo... Por isso alcançou, apesar de grandes obstáculos que lhe foram suscitados na Cúria Romana, a bula da instituição do Tribunal, que Santo Ofício já o havia nestes Reinos, e os erros e heresias costumavam declarar-se aos Inquisidores gerais, que foram tirados das Ordens de S. Francisco e de S. Domingos. Soube El-Rei perfeitamente o que recebia, e soube que afastava dos seus Reinos, quanto nele era, a infâmia de ser suspeito de heresia, e a desgraça de correr após as novidades do século e de perecer eternamente... Ora tudo isto é de uma verdade inquestionável; mas era tal o predomínio das opiniões filosóficas neste Reino, que a erecção do Tribunal do Santo Ofício costumava ser um grande apuro em que se viam os Pregadores nas exéquias deste Soberano, que é de tarifa celebrarem-se anualmente pela Universidade de Coimbra... Não o foi para mim, que em 1819 tirei desse mesmo princípio a maior glória do Restaurador da Academia, e de bom grado quis passar por intolerante e fanático, ou por insecto asqueroso, e imundo resto do Tribunal de sangue, como depois me chamou certo escritor liberalíssimo.

(continuação, Parte III)

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